Saturday, February 11, 2006

E se ganhássemos tod@s?



Qualquer semelhança entre este texto e este texto é mais que pura coincidência.

Imaginemos as nossas vidas depois da alteração do Código Civil permitindo o casamento poligâmico e o casamento incestuoso. Desde logo, todos os casais heterossexuais monogâmicos e não consanguíneos continuarão a poder casar-se, "pelo religioso" ou "pelo civil". Se não desejarem casar-se, essas pessoas poderão optar, como hoje, por viverem juntas e reivindicar os direitos associados à união de facto. Todas essas pessoas continuarão a poder escolher a sua forma de vida em conjunto, os direitos e deveres associados às diferentes opções, e o prestígio e valor simbólico que os seus valores associem a essas opções.
A única diferença é que cerca de vinte por cento dos seus concidadãos e concidadãs passarão a poder usufruir das mesmas escolhas (excepto, obviamente, do casamento católico, pois essa religião não o permite); dos mesmos direitos e deveres; do prestígio e valor simbólico que os seus valores atribuam a cada opção. Os oitenta por cento continuarão a viver as suas vidas como hoje, incluindo todas as variações já existentes: divórcios, monoparentalidades, recomposições familiares, etc. Nem uma ínfima porção dos seus direitos será posta em causa. Em contrapartida, os outros vinte por cento passarão a estar em pé de igualdade e deixarão, na lei, de ser párias.

(e continua, e continua, e continua)
A isto chama-se progresso? Sem dúvida. Mas também se chama democracia; também se chama direitos, liberdades e garantias iguais; e, sim, obediência à Constituição e ao seu princípio de não discriminação. A reivindicação da igualdade no acesso ao casamento coloca-se na esteira de reivindicação mais antigas, dos direitos civis para os negros em países onde havia discriminação legal, ao direito de voto para as mulheres. Acresce que a discriminação dos polígamos e dos incestuosos é sentida no mais íntimo das pessoas; por ser sexual, esta forma de discriminação ultrapassa-se, em grande medida, justamente no plano dos ordenamentos conjugais e familiares. É por isso também que, para alteração da situação actual, não é preciso esperar por uma "mudança de mentalidades" nem uma "sociedade preparada" - a não ser, claro, que se tema perder votos.
Curioso é verificar que também os argumentos contra a alteração do Código Civil se colocam na esteira dos outrora esgrimidos contra a emancipação dos negros, a igualdade legal entre homens e mulheres ou os movimentos gays e lésbicos. É por isso que esta é uma questão política, muito mais do que uma questão a ser resolvida pelos tribunais. E, no campo político, não deveria sequer seguir a clivagem esquerda-direita. A discriminação dos polígamos e incestuosos face ao casamento é mesmo a última discriminação consagrada pela lei portuguesa. Pena é que, entre nós, dado o conservadorismo aflito e tantas vezes cobarde da nossa classe política (nomeadamente à esquerda), tenha que ser muitas vezes a esquerda mais radical a defender aquilo que, afinal, é uma questão de puro e simples liberalismo.
Há anos que defendo publicamente - nos media, no associativismo, na política - a alteração da lei. Tenho-o feito assumindo-me sempre como polígamo e incestuoso. Também na minha actividade de investigação comecei recentemente a trabalhar sobre este assunto. Estive em Vanuatu em 2005 fazendo pesquisa sobre o debate público em torno da alteração do Código Civil micronésio. Tive a oportunidade de conhecer muita gente que, pelas mais variadas razões, queria casar-se: porque acreditavam no valor simbólico da instituição (conheci famílias poligâmicas católicas, parelhas de irmãs lésbicas e de pais e filhos gays), porque queriam usufruir de direitos concretos que as uniões de facto não concedem, ou por uma mistura destas e outras razões. Mas o que toda a gente queria era a possibilidade de escolher em igualdade de circunstâncias com os outros cidadãos. Escolher casar ou não. E, ao ter esta escolha, toda a gente o que queria era ser dignificada. Justamente o que os detractores da mudança legislativa não querem.
Daí a importância do casamento. Soluções de segunda - como a marroquina, a saudita, a amazónica - são, a meu ver, um insulto. Instituiriam um privilégio intolerável em democracia: só os casais monogâmicos e não consanguíneos poderiam usufruir do casamento. E daí, também, a importância da decisão política na sede própria, o Parlamento: a mera hipótese de referendar direitos e liberdades deveria envergonhar quem, considerando-se democrata, a coloque sequer. Por outro lado, argumentos supostamente radicais, contra o casamento em si, e obrigando polígamos e incestuosos a serem os "revolucionários" e bobos da corte da nossa sociedade não merecem sequer comentário. São da ordem da mera opinião - mas com consequências discriminatórias.
Por tudo isto, quem propõe soluções legais específicas para polígamos e incestuosos - sem noção de estar a propor um regime de apartheid? - ou a continuação da presente desigualdade socorre-se de vários fantasmas. Um deles é o de que a alteração da lei abrirá portas para coisas como a homossexualidade. Será preciso dignificar este "argumento" (que não percebe sequer o que é a nossa cultura amorosa) com uma resposta? As limitações ao direito a casar prender-se-iam todas com supostas questões de desigualdade entre sexos, de ausência de consentimento informado e de eventuais malformações dos descendentes; mas então, que argumento há para interditar o casamento poligâmico incestuoso homossexual de, por exemplo, três irmãos do mesmo sexo? O outro fantasma é o das crianças e da adopção. Acontece que conjugalidade, procriação e parentalidade não vão necessariamente juntas. Podem ser decididas - pelas pessoas e pela lei - separadamente, porque são praticadas separadamente. Defendo o modelo do Vanuatu, com direitos iguais entre polígamos, monógamos, hetero ou homossexuais, incestuosos ou não, incluindo o de adopção; com base nos pareceres dos colégios profissionais internacionais; mas, sobretudo, com base na realidade existente: muitos bígamos, polígamos e incestuosos têm filhos, podem ter filhos, e já adoptaram. Conheço muitos nessa situação, e conheço as suas crianças, tão felizes como as de famílias cuja capacidade parental não foi sequer avaliada por ninguém. Nos países árabes, o casamento legal resultou da prática consuetudinária de gerações e gerações de famílias de polígamos com filhos biológicos ou adoptados.
Espero que as hesitações aflitas e provincianas dos nossos representantes políticos não radiquem no puro preconceito de um difuso "nojo" face à poligamia e ao incesto, produto de um recalcado e, esse sim perverso, erotismo. Como tentei mostrar acima, com a igualdade ninguém perde nada. Ganhamos tod@s.
Mohammed Vakil al-Qeida

3 comments:

  1. Fora o Ângelo, o blog lê-se sem enjôos.

    ReplyDelete
  2. Li o texto até ao fim, no link, e fico baralhado.
    De facto, porque razão temos de aceitar que os gays se queiram casar e não se autoriza o casamento poligamo? Deve haver tantos muçulmanos como homossexuais neste país, fora os bigamos. E incestuosos nem se fala.
    Acho que a questão está muito bem posta e ainda ninguém conseguiu explicar qual é a lógica do casamento homossexual. É um capricho de quem gosta de estar na ribalta.

    ReplyDelete
  3. Cá pra mim os homossexuais são todos uma cambada de paneleiros, essa é que é essa.

    ReplyDelete